4/30/2005

A louca do bairro


No outro dia vi a Denise. Para quem não sabe, a Denise foi uma colega da minha irmã mais velha que nunca pôde agradecer à beleza a fartura de amigos. Nem tampouco à inteligência. Na quarta classe, a professora pediu que se fizesse a planta da sala numa folha A4 que distribuía enquanto falava. Estava-se mesmo a ver que a Denise em vez de desenhar as paredes, as portas e as carteiras preferiu desenhar o feto meio murcho que estava na mesa ao lado da professora. Mas não era má miúda, embora um pouco ingénua. Um vez parece que resolveu mostrar à minha irmã os seus 98 cromos da caderneta da Branca de Neve. Quando a minha irmã perguntou quantos lhe faltavam, a Denise respondeu que apenas dois. A minha irmã achou aquilo fartura a mais e foi ver os cromos a voarem todos direitinhos às poças de água enquanto a minha irmã fugia dela. Enfim, a Denise nunca compreendeu a minha irmã… No outro dia vi a Denise. Aliás, ela é que me reconheceu enquanto eu quase resolvia a questão do maço de tabaco encravado na máquina com um pontapé matinal que só me teria feito bem. Falei-lhe entre dentes, voltei para a mesa e pus-me a aprecia-la. Pois, a Denise continuava a não depender de qualquer hipotético magnetismo social. Tinha crescido uns vinte centímetros, engordado uns trinta quilos e pintado o cabelo de um ruivo um bocadito Chelas. Continuava sui generis, a Denise. Passado um bocado, estava eu entretido a ler o Calvin (o Bill Watterson exige-me sempre algumas releituras) quando a bela da Denise se põe aos gritos ao telemóvel. “És uma besta! Uma besta! Não me apareças mais à frente!” A Denise tranformara-se numa desequilibrada, numa amante megafónica. Uma deseiquilibrada antipática a gritar no café antes das 10h. Um caso sério, visto que ninguém grita ao telemóvel no café de bairro onde os pais e os avós vão, é regra elementar. A Denise acende um cigarro, vira-se para o lado donde eu a observa de boca aberta e grunhe que “assim é que os homens têm de ser tratados”. E cuspiu o fumo que ainda guardava nos pulmões. Passaram-me pela mente as imagens do feto na mesa da professora, os cromos a voar, a Denise a correr atrás dos miúdos que fugiam dela… A Denise estava muito diferente. Lastimável mas previsivelmente diferente. Patologicamente diferente. Naquele dia não compreendi onde estava a piada do Calvin.

4/29/2005

Teorização

Se o Estado fosse laico não havia 13º mês.

História Passional, Hollywood, Califórnia

Preliminarmente, telegrafar-te-ei uma dúzia de rosas
Depois te levarei a comer um shop-suey
Se a tarde também for loura abriremos a capota
Teus cabelos ao vento marcarão oitenta milhas.

Dar-me-ás um beijo com batom marca indelével
E eu pegarei tua coxa rija como a madeira
Sorrirás para mim e eu porei óculos escuros
Ante o brilho de teus dois mil dentes de esmalte.


(...)

Interrompo aqui. Este é um dos meus poemas preferidos do V.M., uma tragicomédia terrivelmente bem humurada que não me canso de ler. É a história de uma obsessão, com a graça e colorido das séries B. Ele quer, ela não quer assim tanto. Ele compra-lhe coisas, ela aceita. Ele quer casar (?), ela não. Eu até acho que ela estava a pedi-las, mas não era preciso que o senhor do descapotável chegasse a tanto. Uma dezena de estrofes abaixo, continua:
(...)

Então fico possesso, dou-te um murro na cara
Destruo-te a carótida a violentas dentadas
Ordenho-te até o sangue escorrer entre meu dedos
E te possuo assim, morta e desfigurada.

Depois arrependido choro sobre o teu corpo
E te enterro numa vala, minha pobre namorada...
Fujo mas me descobrem por um fio de cabelo
E seis meses depois morro na câmara de gás.


Vinicius de Moraes, que me desculparia certamente a interrupção.

4/28/2005

Guilhermina Paula (13)

Guilhermina Paula não acreditava em grandes revoluções, mas em pequenos gestos, entre os quais figuravam o marcar criadas com água a ferver de modo aparentemente acidental. A tornar o acto frontal, honestamente propositado, jamais se atreveria; reconhecia e temia o rancor dos subordinados e por isso tratava-os com respeito e bondade aparentes. Sabia que sempre que olhassem um braço queimado ou agonizassem pela aparatosa queda sem explicação ocorrida enquanto procuravam para a menina algo na prateleira mais alta, jamais se esqueceriam de lhe obedecer. E, afinal, quem se atreveria a malquerer do anjo de caracóis barrocos e olhos grandes e azuis?
Guilhermina Paula Trindade Leite de Castro, filha de José Honório, que tinha sangue dos Honório do Desterro, teria com toda a certeza uma boa vida.

Resposta

Não, Lameira, a Igreja não tem o reduzido poder que tu lhe conferes. O mundo não é só a cidade, o acesso à cultura que tu conheces, os jornais que lês, os livros que compras, as pessoas com quem discutes o que não compreendes. Também existe, neste mundo do qual falo, milhões de pessoas que vão à missa todos os dias, que rezam com devoção, que abrem a porta de casa ao padre, que lêem a Bíblia, que pagam promessas, que vão de joelhos por Fátima. Não reduzas essas pessoas a um grupo de excêntricos. Em suma, és etnocêntrico quando pretendes dizer que, hoje, a Igreja não influencia.

Se os padres fodessem...

A polémica Igreja/preservativo revela muita ignorância. É válida a opinião do Paulo Pinto Mascarenhas que concorda com a posição do Vaticano relativamente ao uso do referido anticonceptivo. Mas faz-me lembrar um bocadinho aquela a velha História das Coisas Banais. Saberá o Paulo Pinto Mascarenhas, mesmo como conservador liberal assumido, que o Mundo, que já foi plano, evolui. Entre outras coisas, passou a ser redondo-ligeiramente-achatado-nas-pontas; as pessoas passaram a tomar banho com uma frequência mais assídua; foi provado que a fotografia não tornava a alma humana refém de um poder oculto; e um sem número de outras coisas a que vulgarmente se chama evolução. Imagine-se que o próprio Vaticano até já pediu desculpas sobre os milhares de vidas que, ao abrigo da Inquisição, colheu.

Há muitos, muitos anos, a tourada à espanhola – para falar de um tema conservador que creio ser do gosto do Paulo Pinto Mascarenhas – era um bocadinho diferente. Os cavalos que eram usados para espicaçar inicialmente os touros lidavam com o lombo a descoberto, o que provocava dezenas de cavalos mortos por espectáculo (não sei se acha piada à ideia, mas vamos presumir que não, apenas para que este discurso possa fazer lógica).

Na ditadura de Primo Rivera foi introduzida uma alteração nas lides tauromáticas: o cavalo passaria a envergar uma protecção de couro chamada de peto. Antes do peto, vários cavalos morriam por tarde, os intestinos esventrados pelos cornos afiados. Quem já viu uma tourada à espanhola, sabe como o espectáculo seria horrendo se os cavalos não envergassem o peto. O cavalo dirigindo-se suicida a uma morte lenta, agonizante e inevitável. Nessa altura, Ortega y Gasset insurgiu-se contra a alteração, que acabava com toda piáda da fiesta.

Ortega y Gasset foi um homem do seu tempo, que hoje consideramos um humanista de excelência, um sábio. Foi com toda a certeza um homem de extremada sensibilidade. Mesmo assim, à luz do pensamento comum de hoje, as suas declarações sobre os touros parecem-nos aberrantes, como se Gasset tivesse sido um transviado ou um sádico.
Como será a Igreja apelidada daqui a uns anos? Uma Igreja de homens que são obrigados à castidade exige que a humanidade não utilize o preservativo, mesmo vivendo num mundo flagelado por doenças sexualmente transmissíveis.

Lembram-se daquela quase-lei do Lopes sobre as proibições aos tabagistas. Disseram alguns que ela não evocava as sedes partidárias, o parlamento, a residência oficial do primeiro-ministro, entre outros exemplos. Pois. Apetece evocar a respeito da polémica do preservativo o mesmo argumento: se os padres fodessem – e, como os outros homens, estivessem sujeitos à Sida e outras que tal –, já se podia usar o preservativo.

Por isso, Paulo Pinto Mascarenhas, devo perguntar-lhe o seguinte: será a temporalidade uma desculpa legítima? Virá a Igreja daqui a 500 anos, partindo do pressuposto que chega até lá, desculpar-se dos milhões de vida que rouba hoje através da evocação de uma lei natural que não existe?

Concordo com o João Pedro Henriques quando fala do “papel importantíssimo da Igreja na difusão de um discurso anti-preservativo cujos custos são os que se sabe”. E acredito quando diz que viu em “Timor-Leste a Igreja boicotar activamente campanhas da ONU de distribuição de preservativos, campanhas essas que tinham como único fim a salvaguarda da saúde pública.”

É uma pena o tempo que se perde quando não aceitamos a evolução; inevitavelmente, gastamo-lo a desculparmo-nos no futuro. É tudo uma questão de pensarmos sobre a nossa relatividade.

4/24/2005

Quiz - JM

1-Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro quererias ser?
Ser um livro? Talvez “o Processo” de Kafka. Perturbador e inacabado.

2- Já alguma vez ficaste perturbado por uma personagem de ficção?
Fico perturbado quando me identifico com personagens extremas. Ília Lunev, o protagonista de Três Vidas, de Gorki é um deles.

3- O último livro que compraste?
Comprei por um euro num alfarrabista o livro “Perigo no Ar” de Matthew Holden. É uma colecção de Guerra e Espionagem dos anos 70 que me trás memórias da infância e que me dá muito prazer de ler. Para além de que fica em conta nestes tempos difíceis.

4- O último livro que leste?
O ultimo livroque acabei de ler foi “Três Vidas” de Gorki.

5- Que livros estás a ler?
“Perigo no Ar” de Matthew Holden

6- Seis livros que levarias para uma ilha deserta?
Livro dos Dias de Stephen Rivelle,
A Queda de Berlim de Anthony Beevor,
As Cruzadas vistas pelos Árabes de Amin Maalouf,
Volume 1 da História de Portugal de Alexandre Herculano,
Crime e Castigo de Fiodor Dostoievski,
Guerra e Paz de Leo Tolstoi (caso fique lá encalhado ou precisar de atear a fogueira).


7 – Três pessoas a quem vais passar este testemunho e porquê?
Quem quiser que se acuse.
1-Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro quererias ser?
Não tenho qualquer dúvida. Seria As anotações de Malte Lauridis Brigge, do Rilke. Numa edição de 1978, de capa cinza. Assim o encontrei num alfarrabista perto da Misericórdia.

2- Já alguma vez ficaste perturbado por uma personagem de ficção?
Já. O narrador de Longe de Veracruz. Assusta-me a loucura parecida com o mal dos trópicos.

3- O último livro que compraste?
Livro de Poemas, e. e. cummings. Sul – Viagens, Miguel Sousa Tavares.

4- O último livro que leste?
Olga, a excelente biografia de uma judia-comunista que o governo de Getúlio Vargas entregou a Hitler. Muito bem escrita pelo jornalista brasileiro Fernando Morais.

5- Que livros estás a ler?
Estou no 27º conto do excelente 64 Contos de Rubem Fonseca. E Gente feliz com lágrimas, João de Melo.

6- Seis livros que levarias para uma ilha deserta?
Seis bons livros de fotografia sobre Nova Iorque, Londres, Paris, Tóquio, Barcelona, Roma, Rio. Para a eventualidade de não voltar da tal ilha e lembrar-me dos velhos tempos.

7 – Três pessoas a quem vais passar este testemunho e porquê?
À 1000-Homens, ao Lameira e ao meu sócio neste estabelecimento JM. Porque sim.

4/22/2005

Long Message Service

JOANA 1000 VI MENSAGEM STOP JA TINHA COISAS COMBINADAS STOP PROXIMA SEXTA SEM FALTA STOP DIVIRTAM-SE STOP NAO BEBAM MUITO STOP CAFE DURANTE A SEMANA STOP GOSTEI DO ULTIMO POST STOP ESTOU SEM DINHEIRO NO TELEMOVEL STOP MANDA ABRAÇOS AO PESSOAL STOP GOSTAVA DE MANDAR UM TELEGRAMA A SERIO

4/21/2005

Tenho um post que não me apetece escrever



Era sobre Évora. Talvez isso baste. Talvez baste uma fotografia.

Do tempo as promessas

“Alguma vez te vais esquecer de mim?”
“Terrivelmente, creio que não.”

4/19/2005

Bye Bye Brasil



Bye,bye Brasil
A última ficha caiu
Eu penso em vocês night 'n day
Explica que tá tudo OK
Eu só ando dentro da Lei
eu quero voltar podes crer
eu vi um Brasil na TV
Peguei uma doença em Belém
Agora já tá tudo bem
Mas a ligação está no fim
Tem um japonês atrás de mim
Aquela aquarela mudou
Na estrada peguei uma cor
Capaz de cair um toró
estou me sentindo um jiló
Eu tenho tesão é no mar
Assim que o inverno passar
Bateu uma saudade de ti
Estou a fim de encarar um siri
Com a bênção do Nosso Senhor
O sol nunca mais vai se pôr

Bye,bye Brasil


Chico Buarque

4/18/2005

"Se chamava Lucineide e agora está linda, linda..." V. de M.

.

4/16/2005

Sábado A.M.

Gosto das manhãs de sábado. Talvez porque não são propriamente uma constante na minha vida. Talvez porque são geralmente solarengas. Talvez porque – afinal – até gosto de manhãs. Hoje, apercebi-me que as manhãs – especialmente as de sábado – têm sido por mim subvalorizadas ao longo dos tempos. É tudo uma questão de observação. Por volta das dez da manhã, refastelei-me num café de Lisboa devidamente artilhado com os jornais do dia e, enquanto rasgava o celofane do maço de tabaco e respondia torto ao empregado que me perguntava se desejava o café do dia – afinal eu sou apenas um iniciado nesta coisa das manhãs –, dediquei-me a observar a exuberante fauna madrugadora. Absolutamente fascinante. Na mesa de trás estava o Eduardo Prado Coelho, já com meia dúzia de jornais, cinco revistas e dois livros em processo de digestão intelectual. Até aí tudo normal. Afinal, era só o Eduardo. Cinco minutos depois, estava eu a meio da minha bica curta – que não era nem da Etiópia, nem de Moçambique, nem do Brasil, mas apenas e somente um simples e ingénuo café-curto-ponto – entra a estrela da manhã que me fez passar uns bons dez minutos a pensar no reino de Pasargáda. Alta, os cabelos presos num cacho que lhe deixavam a descoberto os olhos verdes-de-um-verde-que-não-há, lábios grossos. Sentou-se numa mesa próxima, pediu uma torrada e uma galão escuro, abriu o jornal, fechou o jornal, espreguiçou-se imperceptivelmente, viu a última página do jornal, dobrou o jornal, colocou a as duas mãos de dedos finos a apoiar o rosto e ficou a olhar para as árvores lá fora. Parecia estar a degustar aquele momento solitário. Chegou a torrada, comeu a torrada, bebericou o galão escuro onde deitou apenas meio pacote de açúcar, limpou a boca, amarrotou o guardanapo, pô-lo no copo onde houve galão escuro e meio pacote de açúcar. Pagou, saiu, voltou atrás, pegou no jornal que ficara esquecido na mesa, sorriu envergonhada, saiu novamente. Sábado pode ser um dia como os outros. Afinal, todos os dias são mais ou menos iguais. Mas não há manhãs como as de sábado.

4/15/2005

Look, what a beautiful thing, so graceful.



Ah, if she knew / That when she goes by / The world smiles and fills with joy

Os Honórios do Desterro (12)

Guilhermina Paula Trindade Leite de Castro foi o pomposo nome que José Honório, dos Honórios do Desterro, escolheu para dar à sua filha primogénita, por quem esperara muitos dias e muitas noites. A mulher demorara quase uma década a dar-lhe um herdeiro e, talvez por isso, ele pouco se importasse com o facto de lhe sair uma fêmea donde deveria sair um varão forte e saudável. Mas a pequena parecia robusta e em casa dos Honórios sempre se apregoou que as prendas de Deus devem ser aceites sem reticências. Além do mais, sempre era melhor uma herdeira mulher do que nenhuma herdeira e, afinal de contas, um homem não constituía riqueza para a levar consigo para o caixão, mas sim para a deixar aos cuidados de quem a soubesse, senão multiplicar, pelo menos não espatifar. O seu genro seria com certeza alguém com olho para os dinheiros, um sujeito capaz de gerir o património. Ele mesmo se encarregaria de escolher um homem honesto e convenientemente ambicioso, de razoáveis famílias, com quem casasse a sua pequena.

Mas Guilhermina Paula, filha do Honório, aparentada com os Honórios do Desterro, foi mimada o quanto baste para nunca deixar ninguém escolher por ela. Com toda a conveniência, pois tornou-se naquele género de mulher que jamais imprime o tom de confronto a qualquer situação, embora soubesse sempre como levar a água ao seu moinho e com o mínimo de desperdício possível. Esse era, aliás, um conceito que Guilhermina Paula desde muito cedo soube aplicar às relações humanas; do rol de desperdícios faziam parte todas as discussões que pudessem ser evitadas, todas as zangas inúteis, todas as exaltações e polémicas que não lhe resultassem em benefício. A pequena do Honório preferia utilizar a paciência com que fora abençoada por Cristo Nosso Senhor da melhor maneira possível, ou seja, ao serviço da sua teimosia e inteligência.

My sweet west coast

4/13/2005

SLB!

Buenos Aires



Buenos Aires e uma cidade que nos reconcilia com a condicao urbana, que nos lembra que as cidades podem ser construidas para o servico dos homens e que nos ensina que a dimensao e a beleza sao conciliaveis, a monumentalidade e a escala humana podem conviver juntas, os servicos e o comercio podem-se conjugar de forma perfeita com o prazer e a arte de viver uma cidade. Ao contrario, por exemplo, do Rio de Janeiro, cujo enquadramento paisagistico natural nao tem paralelo no mundo, Buenos Aires nao dispoe de trunfos naturais: nao tem costa maritima, nem um rio digno desse nome, nao tem lagoas, nem enseadas nem montanhas, enquadrando-a. Nao ha um Cristo Redentor a quem dar gracas por tanta fortuna. Aqui, tudo e obra dos homens e nada e acrescento divino. E uma cidade feita por homens e para os homens viverem. Por homens visionarios e arrojados que ousaram pensar grande, que construiram a mais antiga e ainda hoje a maior e mais bonita opera de todas as Americas - o Teatro Colon, decorado com marmores de Carrara e de Estremoz -, que secaram pântanos para plantarem os mais fantasticos jardins publicos, que os semearam de uma profusao de estatuas de pedra e de bronze (tantas que, quando ja nao havia mais herois nacionais para representar, foram dedicadas a Mozart ou a Verdi), que deitaram abaixo quarteiroes inteiros para rasgarem algumas das mais largas avenidas do mundo (a 9 de Julho e mesmo a mais larga do planeta), que, de um canal vindo do Rio de La Plata, criaram umas maravilhosas docas de pequenos edificios de tijolo vermelho, ao servico do comercio, dos bares e restaurantes e da marinha de recreio, em pleno coracao da cidade.

Em Buenos Aires convivem harmoniosamente os pequenos bairros populares antigos, territorio do tango e de uma certa rufiagem cativante, com os quarteiroes de arranha-ceus, sobrepostos por decadas sucessivas de arquitectura futurista, desde os anos 20 atea actualidade (foi a primeira cidade da America Latina a erguer um arranha-ceus, a primeira a escavar um metropolitano, em...1910!). Convivem a zona tradicional de comercio da "Baixa" com a zona de servicos e escritorios, a zona de edificios publicos em volta da Praca de Mayo e da Casa Rosada com as magnificas zonas residenciais, como Recoleta, com a sua profusao de antiquarios, galerias de arte, livrarias (abertas atea meia-noite!) e, em cada esquina, o seu cafe, que e um verdadeiro cafe, local de estar, de ver e de conversar, sem formicas, nem aluminios nem plasticos, mas sim moveis de madeira antiga, tampos e balcoes de marmore, fotografias gastas pelo tempo, homenageando os antigos frequentadores, de Borges a Fangio, de Gardel a Peron (e, de cada vez que pedir uma simples "bica", saiba que ela vem sempre acompanhada por um copo de agua com gelo, dois biscoitos e um guardanapo de papel espesso). Por isso tambem, em homenagema influência inglesa, Buenos Aires tem ainda, nao na periferia, mas em pleno centro, milhares de hectares de relvados e jardins publicos a perder de vista, com três hipodromos, dois estadios de polo, "country clubs", campos de futebol, de tenis, picadeiros e escolas de equitacao, percursos pedonais, para cavalos e para ciclistas, jardins infantis e jardins japoneses, jardim zoologico e jardins para passear caes, marinas e ate um aeroporto para voos internos em pleno centro. E todas estas zonas - a comercial, a de servicos, as residenciais e as de lazer - nao funcionam por territorios estanques, mas sim interligados, integrados uns com os outros, de modo que nao ha zonas desertas ou abandonadas conforme os horarios, antes uma cidade que e habitada, vivida e desfrutada na sua totalidade.


Miguel Sousa Tavares

Não só para nostálgicos

Este é um dos blogues mais bonitos que conheço. Merece todas as visitas.

4/12/2005

Saga (11)

Assim foi visto, por muitos anos da sua longa vida existência. A história de Joaquim José dos Santos e da sua longa descendência é volumosa, previno. Casta de homens e mulheres de difícil relação com um destino que não queriam e contra o qual lutaram, bafejados por infortúnios bastantes e amaldiçoados por uma força que deveria ser uma qualidade e não a fonte de mal. Foi a força, e não a ausência desta, a desgraça desta família. Talvez também a danação da origem do seu dinheiro, do seu estatuto e, enfim, de tudo aquilo que representavam. Mas isso será assunto para a nossa conversa mais à frente. Talvez até nos tenhamos distendido mais do que seria conveniente sobre a personalidade deste homem e, assim, deturpado irremediavelmente a objectividade quanto à análise das suas acções. Este foi só um homem que não quis fugir da grandeza de um destino. Dito assim, parece-me que equilibramos mais o discurso. Essa luta por um destino começou precisamente quando Joaquim decidiu abandonar o seu miserável mundo, onde não era mais do que um escravo. Dizer que trabalhou desde que pode suster-se nas pernas talvez seja um exagero, mas não pecará por muito. Os dezasseis anos que passara em Portugal, grande parte deles numa aldeia a mais de duas horas de mula da vila mais próxima, nunca tinham sido fáceis e nenhuma lembrança agradável daqueles tempos ocupava a memória de Joaquim. A última recordação que tinha da mãe, que o parira com catorze anos, era a de uma mulher com aspecto centenário; a cara sulcada de fendas curtidas pelo sol, chuva e lágrimas que chorava à noite, como tantas vezes ele ouvira no escuro da noite, quando não restava já nenhuma vela acesa e o som triste de um lamento atravessava as paredes argilosas até chegar à palhota onde dormia. Em momentos como esse, ele fechava os olhos com força e tentava, com uma vontade férrea, que o seu espírito se evaporasse dali, pensando em rios de águas límpidas e correntes rápidas que o levassem para longe.

Este anjo pornográfico


Suzana Flag, por altura da publicação de A Mentira

4/10/2005

Toda a verdade sobre "a questão que divide a humanidade"

Há um bar a Lisboa, como quem desce a Calçada do Combro, onde só ponho os pés quando já bebi demias. E quando bebo demais digo (ainda mais) "disparates". E acontece que nesse bar há gente conhecida, do género que aparece nos programas do segundo canal ao lado de figuras de reconhecida craveira intelectual que militam nesse grande partida que é o Bloco. (Sim, falo do Luís Osório.)

Pois que o sr. Osório estava lá na sexta-feira e eu - e dois grandes bebâdos que não vou citar (este e esta) - resolvemos perguntar ao sr. Osório o que tinha ele a dizer sobre os tais textos-que-o-tal-jornal-publicava-sem-autorização. Bom, devo dizer que já foi um milagre o sr. Osório me ter compreendido a dizer esse nome João Pedro George depois de vários vodkas. A resposta foi concisa. Disse-me o sr. Osório: "Deesculpe, não conheço esse senhor." Disse mais umas coisas, mas eu sinceramente não me lembro.

Portanto, está esclarecida toda esta história. Os textos de A Capital não foram escritos pelo sr. George (que até mudou de casa com medo dos ladrões), uma vez o director da publicação não conhece "esse senhor". E, como toda a gente sabe, um jornal só publica textos de autores que conheça. Por isso, sr. George, vá apresentar-se ao sr. Osório se quer, num qualquer dia, ver os seus textos copiados. Até lá, aprenda a conviver como um plagiado anónimo. Este conselho é de borla.

4/08/2005

Joaquim José dos Santos, origens (10)

Embora, à época, fosse comum a um - literalmente - novo-rico esconder o quanto pudesse as suas origens humildes, especialmente aqueles que enriqueciam nos brasís e à metrópole retornavam, Joaquim não o fizera. Cedo percebera que a melhor maneira de contrariar a chacota seria aceitá-la frontal e naturalmente, desarmando assim os seus detractores. Já que a sorte não lhe trouxe um berço conveniente nem o respeito de um nome – facto que muito lamentava, pois acreditava que só a riqueza de sangue era, de facto, legítima – apressava-se diligentemente a suprir essa lacuna com ditos de espírito e aparente justiça de carácter, bem como através de uma riqueza inequívoca. Não obstante, o rancor que nutria por quem lhe apontasse essa falha das origens jamais passava e era, de todas, a mais forte razão para odiar alguém. Os desavisados que por esse caminho entraram tiveram suficientes ocasiões para se arrepender de tais gracejos. Mas isso foi muito tempo depois.

4/06/2005

Mine is better than yours



Dificil de acreditar que esta rapariga estava á beira do suícidio antes de David Lynch a convidar para Mullolland Drive.
Actualmente podemos ve-la no filme "The Ring 2".
Ladies and Gentleman, the beautiful Naomi Watts.

Salvador


Afinal, Salvador deixa saudades...

As mulheres da minha vida* I


* Uma, muito lá de casa.

Joaquim José dos Santos, o jogador (9)

Não que Joaquim José dos Santos alguma vez tenha tido especial inclinação para o jogo. O vício, todo o vício, era por ele abominado, pois não passava da distracção típica dos fracos. As virtudes eram a sua máxima, pois todos confiam num homem que não se deixa ruir sob a sombra do vício. E isso servia tanto para o jogo, como para a bebida e nem as mulheres alguma vez foram a fonte da sua perdição, mesmo quando o saldo bancário assim o permitia. Jamais o nosso homem foi visto entre as excentricidades dos bordéis ou perder-se pelas meretrizes ricas que se juntavam à mesa da roleta, que Joaquim frequentava por exigências da boa sociedade. Preferia dispor de uma ou outra amante fixa na cidade, que sustentava a troco de prazer e discrição. Também era, ao contrário de muitos outros homens de nome, zeloso quanto à descendência ilegítima que ia deixando no mundo: qualquer uma das suas amantes estava obrigada à partida, como se de um contrato se tratasse, a desembaraçar-se de qualquer bastardo que entretanto lhe viesse a dar. Uma experiente parteira se encarregaria de tornar intocável a fortuna que pretendia deixar, sem os dramas legais e morais que o adultério acarretava para si e para os seus, numa sociedade hipocritamente zelosa quanto ortodoxia que a sustentava.

Não sei brincar

Este post é diferente. Não estava à espera.

4/05/2005

A morte do Papa João Paulo II

Era decerto um ícone da cultura mundial para todos nós, especialmente para os cristãos, e muito especialmente para a geração que, tal como eu nunca conheceu outro papa que não João Paulo II.

Quando o bispo polaco Karol Wojtyla foi eleito papa em Novembro de 1978, tinha eu apenas 8 meses de vida. Desde sempre me lembro da sua figura, vestido de branco, cabeça calva, cabelo branco e face bondosa, acenando ás multidões que desde sempre o recebiam em sincera e profunda alegria.

Há dois dias Wojtyla morreu após 26 anos e alguns meses de pontificado. Era por certo muito amado pelos cristãos, não só por ser o papa, mas pelo ser humano que era.

Penso que o papa João Paulo II, foi um dos melhores seres humanos que eu conheci. Foi sempre incansável na luta pelo ideal moral humano, defendendo os pobres e os oprimidos. Não o fez só com palavras, mas com actos. Viajou mais do que qualquer outro papa antes dele. Visitou países de todos os continentes e crenças. Trabalhou para unir as diferentes religiões numa causa comum. O bem de todos. Apelou sempre ao amor, rejeitou sempre a guerra e os conflitos, defendeu sempre a vida.

Fê-lo muitas vezes contra todas as críticas de retrogradismo e de intransigência. Numa época em que a SIDA é uma realidade, ele rejeita o uso do preservativo. Numa época em que os países discutem o aborto como forma de controlo da qualidade de vida e do planeamento familiar, ele rejeita-o firmemente.

Obviamente, na sociedade civil, estas posições podem ser tomadas como irrealistas, conservadoras, e até irresponsáveis, mas, na minha opinião, um papa que defende a vida e moral, não pode senão ter estas posições para ser coerente. A igreja avançou muito com o papa, mas não pelo caminho das concessões em termos de valores. Ela avançou pelo caminho do fortalecimento das convicções da consciência de cada um acerca do que é certo e do que é errado, e foi isso que este papa fomentou no seu pontificado.

É o resultado disto que se vê hoje em Roma e um pouco por todo o mundo. Todos os principais líderes mundias lhe prestam homenagem, milhões de pessoas os choram comovidas, pela sua perda. O papa fez história e ficará para a história como protagonista dos nossos tempos.

odpoczywaj w pokoju Karol!

4/04/2005

Untitled (3)

- Tenho uma urgência. Ir a África.

Untitled (2)

Gostei deste Papa. Porque foi o único que conheci. Porque pediu perdão várias vezes. Porque perdoou aquele padre espanhol que o tentou matar em Fátima. Isso basta-me.

Untitled (1)

Povo e Nobreza são vocábulos arcaicos. Clero ainda faz sentido empregar de vez em quando.

O inabalável Joaquim José dos Santos (8)

Mesmo quando os valores se desmoronavam à sua volta e a História tomava rumos que lhe desagradavam, Joaquim soube manter a sua ditosa calma. Não era uma calma natural, isto é, não tinha nascido com ele. A sua impavidez aparente perante as catástrofes não era mais que uma questão de estilo, aprendida à custa da leitura de inúmeros filósofos. Acreditava que só o tolo se deixava toldar pelos achaques dos nervos, e isso ele jamais seria. Quando algo de realmente mau sucedia – e a vida foi pródiga tanto na fortuna como na desgraça –, Joaquim isolava-se: compreendia perfeitamente que à cólera nada mais era do que a zona de atrito entre uma acção biológica e a resistência a esta. Assim, aproximava-se de uma janela e deixava que o ódio ou o pavor lhe toldassem a visão por breves momentos. Nesses instantes febris, o homem abandonava o corpo e julgava-se divino. Eram momentos de lucidez absoluta sobre que decisão deveria tomar. Talvez por isso, Joaquim José dos Santos não nutria pela calamidade qualquer receio. Existe o bem e o mal, existe a sorte e o azar; o proveito que deles se retira depende da mestria do jogador.

A prima afastada

Os Leões de Tolstoi encontraram - através do Blasfémias - uma prima muito cá de casa mas desaparecida há uns anos. Falo da Agatha Christie de La Prada. Obrigado ao Gabriel Silva.

4/02/2005

A grandeza segundo Joaquim José dos Santos (7)

Talvez tivesse sido a sede que aguentou este homem vivo por tanto tempo, uma sede búlimica para cumprir da melhor forma aquilo que acreditava ser o seu destino. Os versículos sagrados ensinavam-no os princípios da resistência e da força e, a tudo isso, Joaquim acrescentava umas pitadas sábias da fé que depositava em Deus, mas especialmente em si próprio. Não raras vezes, esta crença que um homem é capaz de colocar em si próprio resulta na grandeza; foi assim com Napoleão, com Adriano e com todo um rol de homens de Estado. Mais do que qualidades, estes homens acreditavam cegamente em si, mesmo que de loucos fossem chamados e, muitas vezes, por idiotas passassem. Não existe grandeza sem contradição: a razão e a fé resultam na alquimia de um grande destino. E foi essa contradição a melhor herança genética que Joaquim podia passar aos seus; o seu uso dependeria da moral de cada um.

4/01/2005

A Atlântico

Não é má vontade, mas como é que alguém me diz que a Atlântico "é um dos acontecimentos intelectuais dos últimos anos em Portugal"? Das duas, uma:

1. Este é o primeiro número. A não ser que Henrique Raposo seja vidente, ainda é cedo para afirmar a "extraordinária" qualidade de uma revista;

2. Quando H.R. vem dizer que a Atlântico vem preencher um espaço que se encontrava vazio no debate político-cultural em Portugal é porque não anda a comprar as coisas certas para ler e, mais, parece que a Atlântico vem salvar o debate na nação. Exageros...

Desabafo (em alguns casos) pertinente

(...) Não é forçoso que ao visitante apeteça ouvir música e, enquanto desliga e não desliga o som, já o tímpano lhe foi violado. E a violação de tímpanos é uma actividade hiper anti-social. in Guarda-factos

Especialmente a Carla Hilário Quevedo, de quem gosto da prosa, mas cujo gosto musical abomino... (Não é nada pessoal!) Mas convém não esquecer que n'A Praia, como noutros blogs, se tem estado melhor desde que lá anda o João Gilberto.

In the biggest city of South America

Chamava-se Nena. Uma mulher gorda, roupa justa e cabelo curto pintado de vermelho. Brincava com a sua própria desgraça. Tinha entrado numa nova fase da vida. Não choro mais, não!. Contava a sua tragicomédia quotidiana. O alcoól. As festas. Os "negões" que ocupavam um papel de destaque nos dias demasiado longos. Frases interrompidas com estrondosas gargalhas.

Teve uma filha. Teve. Fora assassinada no morro. Nem isso lhe diminui a vontade de viver. Falava com as mãos. Segurava um cigarro. Bebia cerveja e brincava com o chinelo de plástico. Sacudia a cinza que caía na saia. Dizia que era feliz.

Convenceu-nos a visitar o botequim onde costuma ir dançar fórró. Muito bem frequentado. Só amigos e gente boa. Elvira. Já passava dos cinquenta. Loira, unhas cor de sangue. Era a dona dor bar. Um maricas escanzelado ajudava-a aos fins-de-semana.

Servia-nos umas cervejas. Contava que Nena era uma das suas melhores clientes. Chegava a sair dali por volta das sete da manhã, imaginem, e ia directa para o trabalho. Depois de uma noite inteira a fazer rir. É, eu sou assim!.

Falava de sexo. Falava com as mãos. Contava os seus podres. Tinha tido uma filha. Drogas. Era feliz, dançava "forró". Bebia como um homem, algo lhe queimava a garganta. Gostava da vida que tinha. Não se prendia a ninguém desde que a filha morreu. O marido batia-lhe. Chamava-se Nena.

O sol punha-se ás sete da tarde. Despedimo-nos de Elvira e do seu bar de traves azuis, paredes de verde-água. Uma fotografia. Só uma. Os pneus do carro no asfalto quente. A cidade de fim de tarde. As janelas abertas e o vento a bater na cara. Era São Paulo. Era Nena. No rádio, os Morcheeba. My life is just one big cliché…

FEVEREIRO DE 2003

Fotos

As últimas fotos "postadas" pelo Luís do Eternuridade dão wallpapers do melhor.

Anda à roda

"Fui rever o espectáculo que há mais tempo em cena em Portugal -- duzentos e tal anos, mais de 40 só nesta sala. É um musical com uma coreografia impecável e actores-cantores sempre afinadíssimos. Pena os lucros irem para o futebol, mas o espectáculo em si é bastante minimal e abstracto, uma beleza. Apenas sugiro ao encenador que inclua mais mulheres no coro -- já vão aparecendo, mas poucas -- e que em vez daquele monitor vídeo, que fica horrível ali e tapa as pernas do senhor das dezenas, use o ecrã atrás. Em cena todas as terças e quintas ao meio-dia e meia. Entrada livre." In O céu sobre Lisboa O espectáculo esta aqui.

O devoto (6)

Na casa que mandou erguer, rezava-se antes das refeições e a grande casa da herdade tinha um postigo vários metros arredado do chão que dava para a capela. Aos domingos as meninas, mesmo enfermas, tinham que assistir à missa. Mesmo que alguma de suas filhas não se aguentasse nas próprias pernas, estava terminantemente proibida de arredar pé da dali, fosse sob que pretexto fosse. À primeira frase do padre, Joaquim olhava invariavelmente para a janela, assegurando-se que não havia uma única ausência que pudesse diminuir a importância e o rigor daquele ritual. Depois, a partir do momento em que se ajoelhava a primeira vez, passava pela única experiência metafísica que conhecia. Aquele era o momento em que qualquer uma das meninas podia chegar-se um pouco para trás, fechar os olhos e mesmo dormitar na fadiga da doença, com a certeza que o pai não olharia para cima. O respeitável e venerado Joaquim José dos Santos dedicava-se àquele sessão de perfeita catarse com tamanho fervor e empolgamento que não raras vezes chegava a chorar. Imaginava muitas vezes que morreria velho e subiria feliz para o céu, onde seria recebido pelos santos pelos quais mais apreço tinha. Também gostava de se imaginar nos braços quentes da Virgem Maria, essa matriarca compreensiva que cuidaria dele com o carinho que nenhuma mulher antes o demonstrou. Do alto da sua virilidade e poder feudal, o miúdo que foi parido numa noite fria e suja subjugava-se ali a todo o peso divino, comungando com os santos, imaginando-se ele próprio com eles, embora preferisse, imaginaria, a companhia do próprio Deus. Nessas coisas da religião, como em todas as outras, Joaquim preferia estar com quem mandava na realmente; só Deus o compreenderia a ele e às suas idiossincrasias. Só o criador poderia ver nele a bondade sincera, embora encoberta pela capaz de rigidez que embrenhava. Deus, acreditou sempre Joaquim, saberia descobrir nele o filho pródigo que ama o seu pai e rege a sua vida pelos princípios por ele ensinados. Pelo menos foi com essa esperança que Joaquim morreu, muito velho, como ele próprio sempre acreditou.

Knopfler

Hoje é dia de culto. Há duas semanas que a brigada do reumático não fala de outra coisa. O homem que me corta o cabelo, o empregado de mesa, a senhora da papelaria. Na família, também há quem não resiste ao ex-Dire Straits: os primos mais velhos, os tios mais novos. Orgia dos 80.