4/01/2005

O devoto (6)

Na casa que mandou erguer, rezava-se antes das refeições e a grande casa da herdade tinha um postigo vários metros arredado do chão que dava para a capela. Aos domingos as meninas, mesmo enfermas, tinham que assistir à missa. Mesmo que alguma de suas filhas não se aguentasse nas próprias pernas, estava terminantemente proibida de arredar pé da dali, fosse sob que pretexto fosse. À primeira frase do padre, Joaquim olhava invariavelmente para a janela, assegurando-se que não havia uma única ausência que pudesse diminuir a importância e o rigor daquele ritual. Depois, a partir do momento em que se ajoelhava a primeira vez, passava pela única experiência metafísica que conhecia. Aquele era o momento em que qualquer uma das meninas podia chegar-se um pouco para trás, fechar os olhos e mesmo dormitar na fadiga da doença, com a certeza que o pai não olharia para cima. O respeitável e venerado Joaquim José dos Santos dedicava-se àquele sessão de perfeita catarse com tamanho fervor e empolgamento que não raras vezes chegava a chorar. Imaginava muitas vezes que morreria velho e subiria feliz para o céu, onde seria recebido pelos santos pelos quais mais apreço tinha. Também gostava de se imaginar nos braços quentes da Virgem Maria, essa matriarca compreensiva que cuidaria dele com o carinho que nenhuma mulher antes o demonstrou. Do alto da sua virilidade e poder feudal, o miúdo que foi parido numa noite fria e suja subjugava-se ali a todo o peso divino, comungando com os santos, imaginando-se ele próprio com eles, embora preferisse, imaginaria, a companhia do próprio Deus. Nessas coisas da religião, como em todas as outras, Joaquim preferia estar com quem mandava na realmente; só Deus o compreenderia a ele e às suas idiossincrasias. Só o criador poderia ver nele a bondade sincera, embora encoberta pela capaz de rigidez que embrenhava. Deus, acreditou sempre Joaquim, saberia descobrir nele o filho pródigo que ama o seu pai e rege a sua vida pelos princípios por ele ensinados. Pelo menos foi com essa esperança que Joaquim morreu, muito velho, como ele próprio sempre acreditou.