3/18/2005

Memórias Indesejáveis (1)

Infelizmente, Joaquim José dos Santos viveu todos aqueles anos. Se tudo corresse como previsto, nunca seria considerado o homem singular que na verdade foi, pois o normal correr dos tempos se encarregaria de fazer esquecer o seu nome. A sua história, ou a ausência dela, não sobreviveria jamais ao suceder das estações: diluir-se-ia nas tempestades de Inverno e secaria sob o sol escaldante dos campos onde tinha nascido e inevitavelmente morreria. Em boa verdade, houve um sem número de ocasiões propícias a que este nome jamais representasse o que quer que fosse, a começar pelo seu próprio nascimento. O próprio verbo nascer pode coadunar-se pouco com o momento em que este homem veio ao mundo e assumir um pretensiosismo de classe nada desejável. Joaquim da Amélia, como foi conhecido nos primeiros anos da sua vida, não nasceu; antes, foi parido, como o são os bezerros nas noites silenciosas em que a lua muda. Entre uma árvore e outra, entre o som das corujas, o nado que Deus quis que fosse vivo foi despojado do ventre da sua mãe, entre terra e sangue. Uma alma mais atenta às questões míticas ou do religioso podia facilmente adivinhar que quem sobrevive a uma entrada assim neste mundo fica inevitavelmente marcado e imune a muitas adversidades. Mas, para tal, era necessário que houvesse uma alma por perto e, infelizmente, não foi esse o caso: Amélia ofereceu ao mundo o seu filho indesejado na mais completa e absoluta solidão.

1 Comments:

Blogger João Lameira said...

Gostei bastante. Tens jeito para isto. Mas esta história pede continuação. Podias fazer um folhetim, em que este era só o primeiro capítulo.

6:03 da tarde  

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