7/28/2005

O Brasil que ainda se supreende


A nós, portugueses, custa-nos compreender a crise que se abateu sobre o Brasil. A corrupção nunca constituiu uma surpresa na nossa conceptualização tropical e não seria no governo Lula que a tradição deixaria de ser o que sempre foi. Nós, portugueses, deixámos outras coisas por terras de Vera Cruz para além da sífilis. Por isso, a corrupção faz parte do charme tropical e é uma extensão da nossa própria alma, história.

Não obstante, a situação actual é diferente, mais pesarosa. Se para os europeus Lula nunca deixou de ser um sujeito mal barbeado, comuna e com uma não injusta voz de bagaço, os brasileiros viam nele o último remédio para os males de uma sociedade cansada e um futuro sempre adiado.

Um reino para as promessas
A desilusão foi rápida. Em Janeiro de 2003 já se sabia que a viragem não passaria dos discursos ainda inflamados de quem finalmente conquistou o poder. O Lula-presidente sempre foi um político egocêntrico que viu na Presidência e no poder a sua quimera, enquanto o seu objectivo deveria ser melhor o funcionamento das instituições que passou décadas a criticar. Em poucos meses, o antigo operário de São Paulo mostrou que não estava minimamente preparado para gerir um país difícil e que não era mais do que um golpe daquilo que passara anos a combater: o marketing eleitoral.

O supra-líder: as novas formas da arrogância
Além de Lula nunca ter estado preparado para ocupar o Palácio da Alvorada, o presidente brasileiro sempre demonstrou desrespeito pelas instituições. Sempre achou que o seu partido só agora se instalou poder – e para ficar – porque só agora a sociedade brasileira percebeu onde estaria a sua salvação. E o PT seria essa salvação: um estado ideal e, acima de tudo, ad enternum. Em 2004, numa altura em que o MST ressurgia com o seu “Abril Vermelho” – radicalizarão da onda de invasões –, a primeira-dama Marisa plantava nos jardins do Palácio uma enorme estrela vermelha. Resta dizer que, para além da gaffe institucional, toda a área administrativa de Brasília, na qual se inserem os jardins da Alvorada, são zonas onde não se pode mecher, segundo ficou acordado entre Oscar Niemeyer e o Estado brasileiro. A estrela ajardinada, símbolo do PT, é materialização do desrespeito de Lula pelas instituições que, na sua cabeça, estão abaixo de si e do seu valor de ex-operário messiânico que finalmente chega ao poder.

Exemplos deste e de outros géneros proliferaram como cogumelos no governo Lula. O Fome Zero não passou de uma medida tão mediática quanto socialmente infrutífera. José Dirceu – o amigo de sempre, ex-guerrilheiro, antigo exilado político que teve mesmo de se submeter a uma operação plástica para fugir às garras dos anos de chumbo e, finalmente, número dois do governo – teve de abandonar o governo depois de envolvimento em esquemas estranhos. Mas Dirceu só saiu à segundo vez que meteu a pata na poça – ou o pé na jaca, como preferirem –, uma vez que Lula não abandona assim os seus amigos. Já falei aqui sobre desrespeito pelas instituições?

Tudo isto faz com que não me surpreenda minimamente com este escândalo que atravessa o governo e a sociedade em geral. É um esquema corruptivo que não serve apenas para encher os bolsos dos governantes, mas sim para financiar um partido, suas campanhas e seu projecto. Lula tem um projecto de socialismo que deverá ser sobretudo mantido, mesmo que sobre tudo, sobre todos. É desta que a República cai!, grita-se em Brasília, especialmente nos corredores da comissão de inquérito, o local indicado para assistirmos aos telhados de vidro que se expõem despudoradamente.

O que se perde para sempre na República
Lula diz que de nada sabia. Vivam os crédulos!, digo, mas escuso-me a discutir aqui o assunto. A questão que aqui me traz prende-se mais com os efeitos desta crise. Esta era a última oportunidade que os brasileiros davam à política, aos políticos, ao país. Essa oportunidade esgotou-se durante o último mês. As transformações politicas e sociais pelas quais o país passará nos tempos vindouros é para todos uma incógnita. Mas Lula queimou a última nesga de esperança. O histérico e incorruptível líder apercebe-se dos seus pés de barro. Para os brasileiros, esta é a surpresa.