A louca do bairro
No outro dia vi a Denise. Para quem não sabe, a Denise foi uma colega da minha irmã mais velha que nunca pôde agradecer à beleza a fartura de amigos. Nem tampouco à inteligência. Na quarta classe, a professora pediu que se fizesse a planta da sala numa folha A4 que distribuía enquanto falava. Estava-se mesmo a ver que a Denise em vez de desenhar as paredes, as portas e as carteiras preferiu desenhar o feto meio murcho que estava na mesa ao lado da professora. Mas não era má miúda, embora um pouco ingénua. Um vez parece que resolveu mostrar à minha irmã os seus 98 cromos da caderneta da Branca de Neve. Quando a minha irmã perguntou quantos lhe faltavam, a Denise respondeu que apenas dois. A minha irmã achou aquilo fartura a mais e foi ver os cromos a voarem todos direitinhos às poças de água enquanto a minha irmã fugia dela. Enfim, a Denise nunca compreendeu a minha irmã… No outro dia vi a Denise. Aliás, ela é que me reconheceu enquanto eu quase resolvia a questão do maço de tabaco encravado na máquina com um pontapé matinal que só me teria feito bem. Falei-lhe entre dentes, voltei para a mesa e pus-me a aprecia-la. Pois, a Denise continuava a não depender de qualquer hipotético magnetismo social. Tinha crescido uns vinte centímetros, engordado uns trinta quilos e pintado o cabelo de um ruivo um bocadito Chelas. Continuava sui generis, a Denise. Passado um bocado, estava eu entretido a ler o Calvin (o Bill Watterson exige-me sempre algumas releituras) quando a bela da Denise se põe aos gritos ao telemóvel. “És uma besta! Uma besta! Não me apareças mais à frente!” A Denise tranformara-se numa desequilibrada, numa amante megafónica. Uma deseiquilibrada antipática a gritar no café antes das 10h. Um caso sério, visto que ninguém grita ao telemóvel no café de bairro onde os pais e os avós vão, é regra elementar. A Denise acende um cigarro, vira-se para o lado donde eu a observa de boca aberta e grunhe que “assim é que os homens têm de ser tratados”. E cuspiu o fumo que ainda guardava nos pulmões. Passaram-me pela mente as imagens do feto na mesa da professora, os cromos a voar, a Denise a correr atrás dos miúdos que fugiam dela… A Denise estava muito diferente. Lastimável mas previsivelmente diferente. Patologicamente diferente. Naquele dia não compreendi onde estava a piada do Calvin.
2 Comments:
A Denise...ai.
(é só o que tenho a dizer...)
*L*
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