9/06/2005

Caligrafia

"ao Flávio Carneiro

Alcançar primeiro com os olhos a mesa branca da varanda onde miserável se esquece um caderno pautado em cuja carne abortaram-se alguns resumos, pé ante pé, dissimuladamente, transpor o piso de cerâmica da sala, transpô-la, a sala, ato que torna-se muito mais evidente e concreto na imagem dos pés sobre o piso de cerâmica, apoiar a mão direita com preciosismo (em nenhuma hipótese a esquerda) sobre uma cadeira-obstáculo que adormeceu no caminho, debruçar mais um sorriso sobre a capa do caderno onde se lê big explosion em caracteres irregulares coloridos e recordar que era o mais barato da papelaria, empunhar a caneta de tinta azul sobre o canto superior esquerdo da primeira página disponível e observar que um traço magoa a sisudez das pautas nuas, desenvolver o traço em curvas e retas e círculos de acordo com as regras há muito assimiladas numa caligrafia dita elegante e satisfatoriamente legível, decantar o oco da página com uma torrente delas, palavras, entrecortadas por suspiros virgulares e respirações profundas, mas, importante, tudo num único ímpeto que culmine na sombra então possível de um ponto redentor, encerrando questões, enterrando idéias e imagens e simulacros, o ponto final da vitória ou da derrota, tanto faz, o ponto final depois de uma assepsia sem parágrafo ou ponto-e-vírgula, o ponto final que recolhe imagens aleijadas e abençoa um ditongo decrescente que escorre moribundo, o ponto final dos pulmões vazios e dos olhos marejados, o ponto final do fim."


Adriana Lisboa